Os aspectos jurídicos e científicos do aborto de fetos com anencefalia – que estão sendo objeto de um amplo debate envolvendo o Poder Judiciário, a OAB, religiosos, profissionais da área médica e a sociedade civil organizada – colocam novamente à prova a laicidade do Estado Brasileiro. A exemplo do que ocorreu no julgamento que analisou a constitucionalidade do uso de células-tronco embrionárias em pesquisas médicas, a discussão sobre os fetos anencéfalos (sem cérebro) oferece mais uma oportunidade para se saber qual o alcance da laicidade entre os brasileiros, até que ponto o Estado laico permite a interferência e a imposição dessa ou daquela confissão religiosa, dos seus pontos de vista, dos seus preconceitos, da sua visão de mundo nas políticas públicas.
O plenário do STF julgará a polêmica até novembro deste ano, quando será analisada a Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 54 – ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) – que visa tornar sem efeito o capítulo do Código Penal que criminaliza o aborto. Para a CNTS, além de gerar risco para a mulher, carregar um feto “anômalo”, que não sobreviverá depois do parto, ofende a dignidade humana da mãe, prevista no artigo 5º da Constituição Federal.
O tema levanta polêmica no meio jurídico. Muitos acham que a questão deve ser tratada do ponto de vista da saúde pública e não à luz do preconceito moral ou religioso, uma vez que já está mais do que na hora de a sociedade civil enfrentar o tema de forma aberta. No Brasil, o aborto é considerado crime, exceto em duas situações: estupro e risco de vida materno. O aborto é praticado no País por quase um milhão de mulheres em condições clandestinas e inseguras. A maior parte é constituída por pessoas pobres que se valem de métodos às vezes letais para elas próprias, como as garrafadas, talos de mamona e até agulhas de crochê.
Hoje, as mulheres que esperam fetos com anencefalia e não querem levar a gravidez adiante têm de pedir autorização judicial para se submeterem à interrupção da gestação. Sem a autorização, médico e paciente podem ser acusados de crime. Mais de três mil autorizações do tipo foram concedidas no País nos últimos anos. Segundo relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS), apenas os países da América Latina e do Oriente Médio ainda proíbem a interrupção da gravidez em caso de anencefalia.
O Conselho Federal da OAB, em agosto de 2004, se manifestou favoravelmente à tese do direito da mulher à interrupção da gravidez de feto anencefálico, não considerando a mesma uma prática abortiva. Naquela oportunidade, o tema foi debatido amplamente em relação a um caso concreto que estava em curso no Supremo Tribunal Federal. Na época, o ministro Marco Aurélio Mello concedeu uma liminar liberando o procedimento em todo o País.
No julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 54, ajuizada pela CNTS, deverão ser estabelecidas as precauções a serem adotadas antes que uma gravidez seja interrompida, permitindo-se o aborto somente nas situações onde seja constatada cientificamente a presença de feto com anencefalia, para que a mulher não corra o risco de ser processada criminalmente. As restrições fazem parte de um debate interno no STF, integrado majoritariamente por ministros católicos.
O direito da mulher à interrupção da gravidez de feto anencefálico comporta uma ampla uma discussão democrático, que deve ficar acima de manifestações irracionais. Os advogados devem participar desse debate, não só sob o prisma jurídico, mas também humano e social.