ABIMAEL FERRACINNI
Escritor maranhense,Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo.
Dos 27 Governadores de Estado eleitos ou reeleitos em 2006, o Tribunal Superior Eleitoral já deliberou pela cassação dos mandatos de dois deles (Rondônia e Paraíba), havendo a possibilidade de fazer o mesmo em outros seis estados (Maranhão, Santa Catarina, Tocantins, Sergipe, Amapá e Roraima).
Também há notícias de que a Justiça Eleitoral de Primeira Instância estaria aplicando a mesma condenação aos Prefeitos recentemente eleitos em Macapá (AP) e Manaus (AM), bem como já estaria em trâmite no TRE do Maranhão processo semelhante, visando o mandato do Prefeito de São Luís, mencionando que o mesmo estaria ocorrendo em centenas de outras cidades do Brasil.
Ou seja, o que antes ocorria apenas excepcionalmente está se transformando num perigoso hábito, corriqueiro e generalizado. A continuar nesse ritmo, ninguém mais terá a garantia de que o candidato vencedor numa eleição majoritária irá cumprir integralmente o mandato para o qual foi eleito pela população.
Por mais que mereça elogios a determinação da Justiça Eleitoral no cumprimento do seu dever, demonstrando que passou o tempo em que nossas autoridades poderiam se considerar acima da Lei, é fato também que a cassação de Chefes do Poder Executivo, em pleno exercício do Mandato, produz um ambiente de instabilidade, com a inoportuna prorrogação das tensões e disputas da campanha eleitoral, e gera enormes transtornos para a Administração Pública.
A Lei Eleitoral que fundamenta esses processos é mal feita e incompleta, na medida em que não estabelece uma necessária diferenciação entre candidatos eleitos para cargos do Legislativo de candidatos para cargos no Executivo, cominando as mesmas sanções e o mesmo procedimento para ambos os casos.
Uma coisa é cassar o diploma, com a consequente perda do mandato, de um eleito para o Legislativo, já que ele passa a compor um órgão colegiado, cujo funcionamento nÍ ?o s ofrerá um transtorno mais significativo com o afastamento do parlamentar cassado.Situação bem diferente é a cassação de um eleito para o Poder Executivo, pois ele será o "cérebro" de uma complexa estrutura administrativa, único responsável pela definição discricionária de diversas políticas públicas, cujo súbito afastamento gera traumas e enormes prejuízos para a sua comunidade.
Ademais, não é apenas o Prefeito ou o Governador quem perde o cargo, mas todo o seu respectivo Secretariado e funcionários do alto escalão da máquina pública. E nada menos que oito estados da Federação, três capitais estaduais e cerca de trezentas cidades brasileiras podem apresentar esse quadro potencialmente perigoso, caso o TSE julgue procedentes todos esses processos.
Observa-se também que a Lei, ao cassar o primeiro colocado nas eleições, nada diz quanto à hipótese do segundo colocado também ter praticado abusos durante a campanha, não tend o si do promovido contra ele nenhum recurso contra a expedição de seu diploma, já que, derrotado nas urnas, não havia motivos para diplomá-lo... Afinal, qual o propósito da Lei: coibir abusos durante a campanha, ou apenas cassar o vencedor nas urnas?
Não se trata de defender privilégios para essas pessoas, mas sim de reconhecer que a aplicação dessa pena, nos moldes em que está prevista na atual legislação, prejudica também o aparelho estatal, paralisando-o, o que nega vigência ao princípio constitucional de que a pena nunca deve passar da pessoa do condenado (Constituição Federal, artigo 5º, LXV).
Não é objetivo de um legislador elaborar leis que produzam um ambiente de instabilidade social e sérios obstáculos para o funcionamento da Administração Pública. E nem é esse o objetivo dos Juízes, que devem aplicar tais leis aos casos em concreto.Como demonstra o recente episódio de vandalismo ocorrido na cidade de Santa Luzi a (MA) , que ganhou destaque na imprensa nacional, a cassação do diploma de um candidato eleito para o Poder Executivo, por conta de abusos cometidos durante a campanha, produz efetivamente um quadro de convulsão social, sendo secundário definir se tais atos foram orquestrados por partidários do político cassado, ou se foram manifestações espontâneas de revolta da população.
Depois da tragédia ambiental que se abateu sobre Santa Catarina, como pode o TSE agravar ainda mais a situação desse estado, cassando o mandato do seu atual Governador e gerando incertezas quanto à continuidade dos serviços de recuperação das áreas atingidas, por conta da súbita troca de comando da Administração Pública?Já no caso da Paraíba, há a notícia de que, se o segundo colocado nas eleições de 2006 assumir o governo do estado, também ele correrá o risco de ser cassado pelo TSE, igualmente pela prática de abuso do poder econômico durante a campanha e leitoral . Como f ica o princípio da segurança jurídica, diante desse contexto absurdo?
E, no caso do estado de Rondônia, consta que o seu Governador só estaria se mantendo no cargo por conta de liminares inconsistentes, que servem apenas para desmoralizar a Justiça Eleitoral brasileira, quando essa está prestes a completar 80 anos de sua criação.Do modo como esses processos estão sendo julgados e suas sentenças executadas, está se configurando uma estranha intervenção do Judiciário no cerne do Poder Executivo, algo não previsto na Constituição Federal e que contraria o princípio constitucional da independência e harmonia entre os Poderes da União.
Todo especialista em Direito Constitucional sabe que, para se assegurar a independência e harmonia entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, estabeleceu-se um sistema de "freios e contrapesos", em que certos atos exigem a participação de mais de um Poder, para que possam ser efe tivados. Assim é que a Constituição de 1988 deixa claro que o STF (Poder Judiciário) não pode julgar sozinho o Chefe do Executivo Federal (Presidente da República), mesmo quando esse tenha praticado crimes, sem a participação do Congresso Nacional (Poder Legislativo) nesse julgamento.
No caso de crimes comuns, o Supremo precisaria da prévia autorização da Câmara dos Deputados para julgar o Presidente da República e, nos casos de crimes de responsabilidade (processo de impeachment), que poderiam resultar na cassação de mandato, além da prévia autorização da Câmara, esse julgamento seria realizado pelo próprio Senado Federal, conduzido pelo Presidente do STF.
Pergunta-se, então: Se a nível federal é assim, o que leva o TSE a crer que ele pode julgar e cassar sozinho Prefeitos municipais e Governadores de Estado, sem a participação dos respectivos órgãos do Poder Legislativo, municipal e estadual, se a Constituição de 1988 con feriu autono mia aos esta dos e municípios do Brasil, colocando-os em situação de igualdade jurídica com a União Federal?A rigor, do momento em que é eleito até o término de seu mandato, um Chefe do Poder Executivo somente poderia ser cassado pelo correspondente órgão do Poder Legislativo, mediante o devido processo de impeachment.
Assim, confirmada a condenação de um Governador de Estado pelo Tribunal Superior Eleitoral, por abusos praticados durante a campanha, o processo deveria ser encaminhado para a respectiva Assembleia Legislativa, a fim de que fosse imediatamente instaurado o processo de impeachment, cominando-se uma pena alternativa para o caso do Parlamento estadual deliberar pela não cassação de seu Governador.
Dessa maneira, estaria sendo observada a autonomia que a Carta Cidadã conferiu aos estados e municípios do Brasil, colocando-os em situação de simetria com a União Federal, conforme se destacou anteriormente.
Seriam, portant o, os parlamen tares eleitos pelo povo, que também são "Magistrados", que iriam decidir qual a pena a ser aplicada ao Governador, atribuindo respaldo político à decisão jurídica proferida pelo Tribunal, aplicando-se esse princípio também no âmbito dos municípios.
É oportuno lembrar que, no Brasil, os Juízes não são eleitos pelo povo, mas ingressam na carreira através de concurso de provas e títulos. Se esse sistema nos garante uma Magistratura de altíssimo nível, ele também acarreta num certo distanciamento entre o Juiz e a comunidade onde ele atua, algo necessário e até saudável para o exercício da função judicante.
Não é recomendável, porém, que decisões judiciais dessa natureza, desprovidas de respaldo do Legislativo, contrariem a vontade popular, manifestada nas urnas, posto que essa medida aumentará demasiadamente a distância entre o Juiz e a população, que não dispõe de mecanismos legais para coibir um Ma gistrado que dec ide de maneira d iversa da opinião pública. E nem deve haver tais mecanismos, para a garantia da independência que um Juiz deve ter.
Surpreende e incomoda que os Ministros do Tribunal Superior Eleitoral, do Supremo Tribunal Federal, os Deputados e Senadores que compõem o nosso Congresso Nacional, a Ordem dos Advogados do Brasil e o próprio Ministério Público ainda não tenham se apercebido da necessidade de se corrigir essa grave distorção em nossa legislação eleitoral, para o bem da nossa Democracia.