A troca de acusações entre os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa continua repercutindo no meio jurídico e inúmeras manifestações contra e a favor de um ou de outro se espalham em diversos setores da sociedade brasileira.
Para quem assistiu o bate-boca na TV Justiça, reproduzido em várias emissoras de televisão, não fica nenhuma dúvida de que a agressão partiu do ministro Gilmar Mendes que, com sua habitual arrogância, afirmou que Joaquim Barbosa, conhecido em Brasília como JB, não tinha “condições de dar lição a ninguém”. A provocação atingiu em cheio a dignidade de Joaquim Barbosa, que replicou de forma contundente, fazendo com que a temperatura subisse no plenário da maior Corte de Justiça do país.
Na comunidade jurídica, a discussão não está sendo vista como um simples bate-boca e acredita-se que o caso poderá ter desdobramentos imprevisíveis e desagradáveis. Se engana quem imagina que os ânimos serenaram. O tempo fechou na suprema Corte brasileira e não há sinais de que vá melhorar tão cedo. Gilmar Mendes não tem deixado seus pares à vontade para examinar o incidente com serenidade e no mesmo dia do bate-boca quase fazia os ministros assinarem uma nota de repúdio a Joaquim Barbosa.
A nota não saiu devido a intervenção dos ministros Carlos Ayres Britto, Ricardo Lewandowski e Cármem Lúcia, que apontaram as conseqüências desastrosas que ela poderia trazer a imagem do Tribunal. Como Gilmar Mendes forçou a barra, acabou sendo publicada uma manifestação de apoio ao presidente do STF, que insiste em dizer que não há crise, embora todos saibam que o momento é de tensão, tendo em vista as inúmeras manifestações de entidades da sociedade civil organizada condenando o bate-boca.
Graças a uma invenção genuinamente brasileira – a transmissão ao vivo pela televisão das sessões – não dá mais para esconder as feridas e desavenças no Supremo Tribunal Federal, o que não deixa de ser um avanço em termos de transparência e de democracia. Se não existisse a TV Justiça, o episódio passaria despercebido, entre quatro paredes, longe das câmeras.
O ministro Gilmar Mendes é uma pessoa polêmica, de difícil relacionamento e conhecido pelas suas posições extremamente radicais e autoritárias. Sua indicação para o STF foi contestada por profissionais da área jurídica e por muitos jornalistas com atuação em Brasília. Na época, o jurista Dalmo Dallari chegou a afirmar que caso a indicação de Gilmar viesse a ser aprovada pelo Senado, a proteção dos direitos no Brasil e a própria normalidade constitucional estariam correndo sério risco.
Os fatos estão demonstrando que Dallari tinha razão. A normalidade constitucional está ameaçada pelos atos autoritários do presidente do STF, que, com arrogância, dita normas aos outros dois Poderes da República e não tem sido devidamente contido por eles, que aceitaram firmar um pacto republicano proposto pelo ministro. Saiba-se que pacto Republicano é o da Constituição Federal.
Antes de ser ministro do Supremo, Gilmar Mendes foi membro do gabinete do ex-presidente da República, hoje senador, Fernando Collor. Quando era advogado-geral da União no governo de Fernando Henrique Cardoso – que o indicou para o STF – moveu o céu e a terra para tirar a autonomia da OAB, hostilizando de forma mesquinha e desrespeitosa o então presidente da entidade, Reginaldo de Castro, que foi desagravado pelo Conselho Federal da Instituição. Na época, fez críticas severas ao STF – recomendando inclusive que o Executivo Federal desrespeitasse decisões judiciais – e se comprometeu perigosamente na redação de medidas provisórias questionáveis. Sua aprovação para o STF não foi fácil no Senado Federal, onde teve 15 votos contrários, a maior rejeição registrada em indicações semelhantes.
Embora a Lei Orgânica da Magistratura não proíba expressamente a participação societária de magistrados em empresas privadas, Gilmar Mendes tem até hoje participação no controle acionário do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), o que não deixa de abalar a imagem do Judiciário e colocar a Justiça brasileira em delicada situação perante a opinião pública. Quem sabe esse não tenha sido um dos motivos que levaram Joaquim Barbosa a afirmar categoricamente que ele estaria contribuindo para desacreditar o Poder Judiciário no Brasil.
Aliando a atividade de magistrado e a de empresário da educação, Gilmar Mendes fechou contratos sem licitação para cursos diversos do IDP com entidades estatais – desde a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional até o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Quando ele ainda era advogado-geral da União, o Ministério Público Federal chegou a instaurar uma ação de improbidade administrativa por ele ter contratado o IDP para dar cursos no órgão do qual era o principal dirigente – a AGU (Advocacia-Geral da União).
O episódio, que lamentavelmente teve como palco o plenário do Supremo Tribunal Federal, reabre a necessária discussão sobre o processo de escolha dos ministros daquela Corte. Selecionados por ato presidencial, os nomes dos ministros são aprovados ou reprovados pelo Senado, mas não há notícia no Brasil de que algum indicado tenha sido rejeitado naquela casa legislativa. O Senado norte-americano é mais cuidadoso na aprovação dos candidatos à Suprema Corte, e a imprensa, consciente de sua responsabilidade, os submete ao escrutínio da opinião pública.
Um ministro do Supremo Tribunal Federal tem tanto poder que seria necessária outra legitimidade – além da escolha presidencial e da aprovação do Senado – para a sua nomeação. Enquanto não houver critérios mais democráticos para a aprovação de indicados ao STF, o Senado deveria, pelo menos, ouvir a opinião da sociedade em audiências públicas, como faz antes de outras decisões.
Seria importante também que o Congresso Nacional acolhesse a proposta da OAB e aprovasse a transformação do STF em Corte Constitucional exclusiva, com a fixação de um mandato de dez anos, sem direito à reeleição para os onze ocupantes do mais importante tribunal do país.