terça-feira, 11 de novembro de 2008

A Constituição de 1988

Abimael Ferracinni
Escritor e Bacharel em Direito pela USP

Certa vez, nos tempos de faculdade, um professor fez o seguinte comentário para a minha turma: “Esqueçam a Constituição!... Ninguém a leva a sério nesse país!... Se precisarem de uma norma legal para uma petição, utilizem o Código Civil... Se vocês mencionarem a Constituição, serão motivo de piada nos fóruns e tribunais de todo o Brasil!”.

Ele se referia à Constituição de 1967, outorgada pelo regime militar, mas poderia estar falando de todas as anteriores, pois, copiando o nosso Presidente Lula, nunca antes, na História deste país, as Constituições foram tratadas com o merecido respeito, seja por parte dos governantes, seja por parte da própria população.

Ocorreu, então, a redemocratização do Brasil, a eleição e instalação da Assembléia Nacional Constituinte e, em 05 de outubro de 1988, a promulgação da atual Carta Magna, a “Constituição Cidadã”, como a batizou o saudoso Dr. Ulysses Guimarães.

Desde então, paulatinamente, ela foi se impondo na dinâmica da sociedade, desfazendo concepções antigas e arraigadas e, num Brasil em que algumas leis “pegam” e outras não, a atual Constituição “pegou”. Hoje, qualquer profissional do Direito pode invocá-la em suas ações, que não correrá o risco de ser motivo de piada nos fóruns e tribunais desse país.

A nossa Constituição não é perfeita, mas essa talvez seja a sua maior virtude. Ela reflete com precisão os erros, acertos, conflitos, dúvidas, certezas, interesses, ideologias e até mesquinharias daqueles que a elaboraram.

Ela não é uma obra apenas de juristas. Eles também participaram e lhe deram uma valiosa contribuição, assim como os políticos, os intelectuais, os trabalhadores e líderes sindicais, os militantes de movimentos sociais, as pessoas comuns, os analfabetos e até mesmo aqueles que, sem saber ao certo o que é uma Constituição, também participaram de sua elaboração.
Mas todos eles, todos nós, deixamos gravado nela o nosso sincero desejo de fazer do Brasil uma democracia de verdade, como nunca houvera antes, na História desse país.

Alguns podem afirmar que as Constituições de 1891, 1934 e 1946 também refletiriam esse mosaico de questões da sociedade brasileira, posto que foram igualmente promulgadas por Assembléias Constituintes, mas essa afirmação não é correta.

Elaboradas no Rio de Janeiro, a cidade que o colonizador português escolheu para ser a capital do país, e na região acostumada a conduzir a política do Brasil, desde a época da Independência, as Constituições de 1891, 1934 e 1946 foram maculadas pela preponderância dos interesses do Sudeste brasileiro sobre as demais regiões do país.

Os períodos de instabilidade política e social que se seguiram a elas demonstram claramente o quanto estas “Cartas” estavam “viciadas”.

Já a Constituição de 1988, elaborada na cidade que nós construímos, enquanto país independente e soberano, para ser a Capital da Federação, foi escrita no momento em que o Centro-Oeste do Brasil começava a se desenvolver e sua elite local ainda não era forte o suficiente para se impor sobre as demais elites regionais do país, obtendo-se, portanto, um território verdadeiramente neutro, ou algo bem próximo desse ideal, para a sua elaboração.

Fazendo uma analogia com o Futebol, podemos dizer que a Constituição de 1988 foi um grande empate, ou o resultado o mais justo possível, entre todos os estados da Federação, pelo fato de que nenhum deles foi prejudicado ou favorecido por estar “jogando” na então jovem Brasília.
Por causa dessa circunstância, a Constituição de 1988 é realmente a nossa “Constituição Federal”, porque escrita de maneira legítima, democrática e numa cidade que já era de todos nós, mas que ainda não era de ninguém em particular, numa conjugação de fatores que inadvertidamente criou uma situação perfeita para a sua elaboração, ou algo bem próximo dessa perfeição, e que dificilmente tornará a se repetir.

E todos nós testemunhamos a estabilidade institucional que essa Constituição verdadeiramente “Federal” nos proporcionou, os benefícios econômicos e sociais que ela nos trouxe e, principalmente, como foram difíceis os episódios em que os governos tentaram alterá-la e como foram duvidosos os resultados obtidos com essas alterações.

Alguns dizem que, por causa de suas contradições, ela fez do Brasil um país ingovernável. Eu digo: “Que bom!... Se ela fez isso, então cumpriu o seu principal objetivo”!
Constituições não foram concebidas para facilitar a vida ou o trabalho dos governantes. Além de nos dar os direitos e garantias que todos conhecemos, ela surgiram para impor limites: limites ao arbítrio daqueles que exercem o poder; limites à ganância da atividade econômica; e limites à conduta dos cidadãos comuns.

Nesses tempos vertiginosos de globalização e de internet, de telefone celular e de grampos telefônicos, de TV a cabo, digital e da banalização do uso de satélites, de Pré-sal e de carros a preços acessíveis e de toda a tecnologia que conseguimos produzir, como nós precisamos de limites, que nos façam parar de vez em quando; que nos façam perceber que não somos máquinas, nem deuses onipotentes, mas apenas seres humanos, com todas as implicações inerentes a essa condição; que nos levem a pensar sobre o que estamos fazendo a nós mesmos, aos nossos semelhantes, à cidade, estado e país onde nascemos e onde estamos vivendo... Que bom que a nossa Constituição esteja aí, para nos impor esses limites.

Para aqueles que gostam de modificá-la e que já sonham com uma nova Constituição, torno público o meu desejo pessoal: Que ela seja modificada, sim, mas para que se restabeleça o seu texto original, que aqueles constituintes promulgaram em 05 de outubro de 1988, na medida em que for possível fazer essa restauração, ou, quando muito, que não se façam mais alterações nela, se não forem com o intuito de restaurá-la.

Ninguém tem competência para modificar um trabalho que foi realizado de maneira legítima, democrática, num período e num local que propiciaram uma situação de real e efêmera igualdade entre todos os estados da Federação e que dificilmente irá se repetir, sob o risco de se comprometer a estabilidade que a Constituição tem nos proporcionado.

Ainda que a Constituição admita a possibilidade de ser alterada, esse mecanismo deve ser utilizado de maneira restritiva, pois, por uma questão conceitual, o legislador ordinário não pode se igualar, e muito menos se sobrepor, ao legislador constituinte que, como vimos aqui, atingiu o ápice de sua plenitude com a Constituição de 1988.

Pode o legislador ordinário emendar a Constituição apenas para corrigir inexatidões materiais, suprir omissões e esclarecer contradições aparentes entre seus artigos. Quando muito, pode o legislador ordinário incluir no texto constitucional questões que não foram tratadas pelos constituintes.

Não cabe ao legislador ordinário modificar essencialmente aquilo que a Assembléia Nacional Constituinte determinou, pois, do contrário, e também por analogia, seria o mesmo que admitir que um juiz de instância inferior pode modificar decisões proferidas por um Tribunal superior.
Cabe a nós, tão somente, trabalhar para adaptarmos nossas leis e a nossa realidade aos princípios que aqueles constituintes estabeleceram em 1988, abandonando a pretensão autoritária de querer modificá-los, para atender às nossas conveniências, interesses e vaidades pessoais e partidárias, mesmo que a pretexto de lhe corrigir os erros. Não se pode aperfeiçoar algo que inadvertidamente já atingiu a perfeição possível.

Em não havendo novas rupturas institucionais, e esperemos que elas não ocorram, somente se poderá falar em nova revisão do texto constitucional a partir de 2058, quando a atual Constituição completar 70 anos de vigência, superando em longevidade a Constituição de 1824 e tornando-se a Carta Magna mais duradoura da História do Brasil.

Esse é um critério objetivo, que não desperta a suspeita de favorecimento pessoal a quem quer que seja, a não ser ao país como um todo, algo que deve ser considerado quando se observa que o Brasil é um país de dimensões continentais ainda repleto de oligarquias regionais, ávidas pela conquista de mais poder e sempre dispostas a tudo para a conservação do poder de que já dispõem.

Ao lado de seu nome oficial e do título que lhe deu o saudoso Dr. Ulysses, gostaria também que doravante ela fosse chamada de a “Constituição do Brasil e dos Brasileiros”, por ter sido o instrumento de afirmação da soberania deste país e de seu povo, inclusive sobre as suas oligarquias e interesses, regionais e municipais.

E, no mês e ano em que se comemora o seu vigésimo aniversário, só me resta terminar este artigo lhe rendendo uma homenagem, singela, mas verdadeira, em meu coração e no de muitos brasileiros: Parabéns e Vida Longa para a Constituição do Brasil!!!