quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

As mensagens confusas enviadas pelo Vaticano

Os diplomatas dos Estados Unidos parecem estar impressionados com as estruturas e a falta de sofisticação do Vaticano. Não só a maioria dos líderes da Igreja Católica não possui e-mail, mas somente uns poucos “estão cientes de decisões iminentes”.

Um mês após o cardeal alemão Joseph Ratzinger ter sido eleito papa na Capela Sistina, em 19 de abril de 2005, a Embaixada dos Estados Unidos no Vaticano enviou uma mensagem sigilosa (“cable”, em inglês) ao Departamento de Estado, em Washington, com a sua primeira exposição daquilo que os Estados Unidos e o mundo em geral deveriam esperar do novo líder da Igreja Católica Apostólica Romana.

O papa Bento 16 fora um dos aliados mais próximos do seu antecessor, o papa João Paulo 2º. Segundo observadores norte-americanos do Vaticano, seria “impensável” que o novo papa fosse se desviar das posições estritas anteriores em relação a questões éticas como o aborto, a eutanásia, a contracepção, a clonagem e a homossexualidade.

No perfil traçado pela embaixada observou-se que o novo papa não tinha experiência política e que, devido à sua idade, ele não teria como adquiri-la. Mas os diplomatas dos Estados Unidos no Vaticano não reclamaram de não terem o que fazer. Durante os últimos dez anos, eles enviaram um total de 729 mensagens sigilosas ao Departamento de Estado.

Em algumas ocasiões, eles simplesmente tentaram explicar ao Departamento de Estado como o Vaticano funcionava – e fizeram isso usando relatórios que descrevem um universo realmente curioso. Segundo um relatório de 2009, embora a igreja seja “altamente hierárquica”, ela é também caótica. Da mesma forma, é frequente que “apenas um punhado de especialistas esteja ciente de decisões iminentes” e eles geralmente simplesmente concordam com tudo o que os seus superiores decidem. Ainda de acordo com o relatório, dificilmente alguém ousou alguma vez criticar o papa ou transmitir a ele más notícias. É raro encontrar lá dentro assessores de pensamento independente.

Comunicação em “linguagem cifrada”

O círculo de lideranças mais graduadas do Vaticano é quase que integralmente composto de homens italianos que têm entre 70 e 80 anos de idade. Os norte-americanos observam com ironia que “a maioria dos líderes do Vaticano... não entende a mídia moderna e as novas tecnologias de informação”, e que “muitos desses líderes não possuem sequer uma conta de e-mail”. Eles observam ainda que o cardeal secretário de Estado, o nome dado pela Santa Sé ao cargo equivalente ao de primeiro-ministro, não fala inglês, além de ser considerado um indivíduo subserviente, do tipo que diz “sim senhor”.

Os indivíduos mais próximos ao papa comunicam-se entre si em “uma linguagem 'cifrada' que as pessoas que não fazem parte do círculo interno de poder do Vaticano são incapazes de entender”. Os diplomatas norte-americanos fazem piada, por exemplo, com o fato de o embaixador israelense ter recebido recentemente uma mensagem do Vaticano que incluiria algo de positivo sobre o seu país. Mas, como a mensagem foi redigida em uma linguagem tão impenetrável, o embaixador “não foi capaz de identificar nada, mesmo após ter sido informado de que os elogios estavam lá”.

Washington também parece ter um interesse especial pela Cúria Romana, o aparato administrativo do Vaticano, e pela sua política em relação aos Estados asiáticos com o qual Washington atualmente tem problemas, incluindo a Coreia do Norte, Burma (Mianmar), o Vietnã e, especialmente, a China. Em uma mensagem classificada como “secreta”, de 7 de dezembro de 2009, a embaixada fornece um relatório detalhado sobre as atividades da Caritas Internationalis, a confederação de organizações católicas de auxílio humanitário sob o controle do Vaticano, em países como a China, a Coreia do Norte e Mianmar.

Trabalhando discretamente na China e na Coreia do Norte

Os regimes desses países toleram o trabalho da Caritas dentro das suas fronteiras, pelo menos periodicamente, porque necessitam da assistência. Até mesmo na Coreia do Norte, a organização realiza discretamente o seu trabalho de caridade, incluindo a administração de dois hospitais financiados pelo Vaticano.

A Embaixada dos Estados Unidos dedicou uma série de relatórios às relações entre o Vaticano e a China. Essas relações são tidas como bastante sensíveis porque existem duas igrejas católicas competindo entre si na República Popular da China. De um lado, existe uma igreja “patriótica” apoiada pelo regime comunista. E, do outro lado, há uma igreja clandestina que ainda é leal a Roma e que atualmente é tolerada por Pequim, após anos de perseguição.

Segundo um dirigente da Caritas, a organização trabalha com ambas as igrejas. O governo chinês está ciente disso, acrescentou o dirigente, mas as autoridades ainda “fazem vistas grossas” quando funcionários da Caritas cooperam com membros da igreja clandestina.

Obstruindo os trabalhos da principal promotora da ONU

Graças aos seus bons vínculos com autoridades graduadas do Vaticano, a Embaixada dos Estados Unidos foi capaz de enviar um alerta antecipado e detalhado à sede da diplomacia norte-americana, em Washington, a respeito do iminente escândalo envolvendo Carla del Ponte, a suíça que à época era a principal promotora da Organização das Nações Unidas (ONU), em Haia, para as questões envolvendo crimes de guerra.

Em agosto de 2005, del Ponte foi pessoalmente ao Vaticano para solicitar à Cúria Romana que contribuísse para a prisão de Ante Gotovina, um ex-general croata, que estava sendo procurado pelo Tribunal de Haia devido à prática de crimes de guerra. Embora ele ainda seja considerado um herói na Croácia, acredita-se que Gotovina seja o responsável por atrocidades cometidas contra civis de etnia sérvia como parte de uma ofensiva em agosto de 1995, durante a guerra civil que se seguiu à desintegração da Iugoslávia. Del Ponte disse aos seus anfitriões que Gotovina estava escondido em um mosteiro franciscano na Croácia – e ela acusou a igreja de o estar protegendo.

No entanto, ela foi ignorada pelo arcebispo Giovanni Lajolo, que à época era o ministro das Relações Exteriores do Vaticano. Indignada, del Ponte afirmou: “A Cúria Romana recusa-se totalmente a cooperar conosco”. Ela alegou que jamais recebeu uma resposta a uma carta que enviou ao papa Bento 16. Além do mais, ao que parece os sentimentos negativos eram mútuos: já em 22 de agosto, o chefe da divisão do Vaticano responsável pela supervisão das questões dos Bálcãs reclamou junto à Embaixada dos Estados Unidos do comportamento “bastante anti-diplomático” de del Ponte. Em uma mensagem que os diplomatas enviaram pouco depois a Washington, eles falaram sobre “a impressão muito ruim” provocada por del Ponte no Vaticano.

A Cúria justificou a sua recusa em prestar ajuda ao Tribunal de Haia na sua caçada a Gotovina observando que era extremamente improvável que o ex-general estivesse escondido em um mosteiro franciscano. Não obstante, uma fonte de dentro da igreja admitiu para os norte-americanos que havia no momento tensões referentes aos monges franciscanos – embora os membros da ordem ainda sejam bastante respeitados pela sua heroica resistência às iniciativas comunistas no sentido de reprimir os cristãos.

Segundo uma autoridade graduada, del Ponte foi muito agressiva quando exigiu uma audiência com o papa. Mesmo anos após o episódio, a ex-promotora ainda mostra-se revoltada com o episódio. Nas suas memórias, publicadas em 2008, del Ponte descreveu como o arcebispo Lajolo respondeu ao seu pedido: “Você deve simplesmente ir até a Praça de São Pedro”, teria dito Lajolo à promotora. Ele estava se referindo, é claro, à audiência geral que o líder da Igreja Católica concede todas as quartas-feiras – para dezenas de milhares de visitantes. (Der Spiegel/Ulrich Schwarz)